Certo dia, um velejador solitário, vindo de Antuérpia, aportou na costa sul de uma ilha atlântica, num daqueles abrigos naturais forjados pelo fogo e pelo mar, refúgio de embarcações, viajantes e aves marinhas. Tal como os navegantes portugueses que há 600 anos descobriram estas paragens, também ele veio aqui ter, desviado por uma tempestade, no seu caminho pela costa de África. Brabo, assim era conhecido, queria apenas descansar, deixar passar a intempérie que parecia não ter autorização para se aproximar daquele pedaço de terra e, depois, partir rumo a sul.

Mas, apesar de ser um lobo do mar solitário e homem reservado, Brabo tinha uma vontade enorme de ouvir histórias dos sítios onde parava. Afinal, é no seu encalce que tem viajado por meio mundo oceânico, nos últimos anos. E, certamente por isso, o curso da sua viagem começou a mudar, logo na manhã da sua chegada.

 

Mal se aproximou de terra firme, chamou-lhe a atenção uma construção harmoniosamente integrada entre a escarpa, em tons de verde e pedra vulcânica, e o oceano, azul cobalto. Suportada por pilares altos, dava a ilusão de estar suspensa sobre as águas. No cimo da sua entrada, figurava uma palavra que o intrigou: SACCHARUM. Pareceu-lhe uma senha mágica, uma versão “abre-te sésamo” de um sítio secreto no meio do mar. Naturalmente, havia ali uma história. Brabo quis descobri-la.

 

Entrou e a primeira sensação que teve foi de estar num local exclusivo e até misterioso. O que representavam aquelas imagens ampliadas de canas de tons verdes, castanhos e violáceos? O que significava este chão texturado e estas altas colunas de tijolo castanho, trazendo à memória um ambiente industrial? Avançou pelo espaço amplo daquele átrio serenamente iluminado por um imponente lustre metálico e entrou numa galeria com um número, também ele enigmático para Brabo: 1425. Mas a partir daí, tal como um fio invisível o conduziu até este ponto, toda a história daquele local se desenrolou à sua frente: das densas plantações de cana sacarina aos duros processos de monda, de esfolhar, de corte e transporte das canas. Da intensa extração, já nos engenhos, do suco doce (garapa) até à produção do famoso açúcar sólido.

 

Saccharum é o nome em latim para a cana de açúcar, chegada a esta ilha, precisamente, em 1425. Uma data importante porque foi o ponto de partida para a produção e comércio do açúcar, que deu grande desenvolvimento e proveito a esta terra. No seu auge, em pleno século XVI, era comum ver por estas paragens napolitanos, bascos, catalães, turcos e, também, flamengos (antepassados de Brabo), todos em busca desse bem, à época raro e caro, a que chamavam o “ouro branco”.

 

Brabo percebeu nesta galeria que esta realidade já não existia, mas que, 5 séculos depois, ainda era possível ouvir, talvez ver, os ecos desta memória. Ficou com vontade de procurar os locais onde tudo aconteceu e escutar quem lhe pudesse transmitir mais relatos dessa epopeia.

 

 

Partiu, então, numa longa caminhada, apenas seguindo o íngreme traçado de um antigo canal de rega (uma levada). Rodeado de acácias, eucaliptos, pinheiros e flores silvestres e sempre acompanhado do rumor da água vindo do canal, mas também de cascatas que ao longe se faziam ouvir, Brabo subiu até um vale sobranceiro ao mar. No topo deste magnífico terraço natural, erguia-se uma plantação de canas de açúcar. Avançou para o interior do canavial e aí se deteve por largos instantes. Totalmente envolto pelas folhas largas e agudas que cobriam o céu, a mais de 3 metros de altura, contemplou a combinação única das cores das canas e sentiu nas mãos a textura dos seus nós. Com o seu canivete de marinheiro, cortou uma planta e provou o sumo que escorreu do seu interior. Foi um momento mágico. Pareceu-lhe que naquele lugar não havia tempo. Que poderia estar ali, agora, como poderia estar ao lado dos seus antepassados, há 600 anos atrás, pisando este chão, tocando esta paisagem, sentido o mesmo sabor doce da cana.

 

A tarde caía e estava na altura de descer até ao mar, onde o barco o esperava. No caminho, cruzou-se com um homem que poderia ser seu avô, com o mesmo azul nos olhos e os mesmos traços na cara, apenas mais vincados pelo tempo. Sentado num banco, junto a uma casa com uma chaminé alta, entrelaçava vime com as suas mãos fortes e calejadas. O velho ofereceu-lhe um copo de rum, com a familiaridade de quem estaria à espera de Brabo desde sempre. Contou-lhe que naquele sítio ainda funciona um engenho do açúcar. Onde, com a força das águas que descem da montanha, as canas são trituradas numa grande mó para se obter a garapa que, por sua vez, é cozida em caldeiras para se alcançar o ponto do açúcar. E onde, num enorme alambique de cobre, se faz em simultâneo a aguardente de cana sacarina que agora bebiam. As histórias foram-se sucedendo, muitas outras teriam que esperar por outro dia. Brabo estava cansado da sua longa viagem marítima e da intensa caminhada que fez.

 

Já próximo da praia olhou de novo o grande pórtico com a palavra SACCHARUM. O sol mergulhava lentamente no horizonte e ele decidiu entrar de novo para assistir ao levantar da noite de um ponto mais alto. Ao chegar ao topo do edifício sentiu que o bem-estar que a água transmite, não vinha “apenas” do imenso oceano à sua frente. A água era um elemento permanente em seu redor. Um desses espaços convidava-o a mergulhar numa piscina de tons dourados, lembrando o melaço, o líquido que fica depois da cristalização do açúcar. Numa outra piscina, exterior, imperava a sensação de se estar imerso num mundo aquático sem limites.

 

 

Percorreu depois outras áreas inspiradas na beleza da cana do açúcar e no ritual dos engenhos que o transformam. Ambientes onde a serenidade respirava através da luz, dos materiais, das cores e da forma como tudo era acolhedor e reservado. As horas avançavam, Brabo provou uma das iguarias da gastronomia local servidas no restaurante e preparava-se para recolher ao seu iate.

 

Nos últimos anos, o velejador nunca havia pernoitado fora do seu barco. Estava mesmo convencido que já não conseguiria dormir se não fosse sozinho na sua cabine, embalado pelo mar. Mas algo tinha mudado nesse dia. E em vez de se dirigir à costa, pediu um quarto para passar a noite.

 

Foi apenas a primeira. Desde então, passou a incluir este refúgio entre o mar e a montanha como ponto de passagem obrigatório nas suas viagens. Na sua carta náutica, numa pequena baía na costa sul da Ilha da Madeira a que chamam Calheta, Brabo assinalou: Saccharum, a Casa da Água Açucarada.